Esta é a realidade brasileira,
desumana, cruel, ingrata, injusta que fere impiedosamente os pobres, os
pequenos, os sem vez e voz. Uma mulher grávida, extremamente necessitada do
“pão nosso de cada dia”, “rouba” uma lata de manteiga, possivelmente para saciar
sua fome. Dois seres passando fome: ela e o bebê. Conseqüência: passou três
dias na cadeia. Essa cena dramática, traumatizante, não foi na França, mas em
Fortaleza, no Nordeste brasileiro. Essa pobre mulher ganhou fama, notoriedade,
mas uma fama ou notoriedade bem diferente: passou a ser mal vista, odiada,
vilipendiada na sua dignidade pessoa humana. Agora era tratada como ladra.
A sua família humilde, simples,
resolveu se reunir na noite de Natal para celebrar o nascimento de Jesus. A
mãe, com os olhos lacrimejados, voz embargada, assim falou: graças a Deus,
todos reunidos para o simples jantar ( a família havia ganhado uma cesta básica)
e para a celebração do natal, menos minha filha Severina, que está na cadeia. E
todos choraram amargamente.
Para essa mulher grávida e
desempregada, acusada de roubar uma lata de manteiga, agora era alvo de
escárnio, zombaria, desprezo. Repórteres, Fotógrafos, cinegrafistas eufóricos a
sua procura para tirar fotos, filmá-la. Trabalho este a render-lhes uma boa
matéria de cunho policial, conseqüentemente, um bom dinheiro.
Acusações, condenações, cadeia,
maus-tratos e desprezos varriam, feito furacão a 300 km por hora, a vida
daquela futura mamãe. Na solidão do abandono, da rejeição e da condenação, na
cadeia do seu interior, certamente, ela pensou: lá em casa, todos reunidos para
o jantar e a novena, menos eu, trancada neste lugar lúgubre e infernal. Pobre
de mim!
Tudo isso para dizer que,
enquanto uma brincadeira, literalmente comercial, toma dimensão inimaginável,
levando ao palco da notoriedade, da famosidade homens e mulheres que não sabem
o que é fome, sede, miséria, injustiça social, exclusão econômica e cultural,
satisfazendo seu ego de grandeza, de auto-exibição, há milhares e milhares de
cidadãos gritando por vida, por justiça, por dignidade. Só que esse grito
pungente não é levado em consideração não só pelos os que detêm o poder
político, mas também, por aqueles que têm o poder da comunicação nas mãos, ou
seja, os donos dos grandes meios de comunicação social: rádio, televisão,
jornais. Seu grito de dor, de socorro, torna-se um grito abafado, ignorado. E
os pobres coitados, não encontrando respaldo na sua luta por vida, só lhes
resta pensar: para nós, tudo é difícil, até para viver. E Nessa hora, não
aparecem marqueteiros para ajudá-los. Para aqueles, aplausos, espaço nobre na
mídia, admiração, honrarias, medalhas, para estes, críticas ferrenhas com
expressões depreciativas: são vagabundos, malandras, não querem trabalhar,
preguiçosos. Para aqueles, colunas sociais, entrevistas, oportunidades de
ascensão, de lucro, para estes, polícia, cassetete, cadeia.
Querer dar atenção a uma
brincadeira estrategicamente planejada, fruto de marketing comercial, é no
mínimo subestimar nossa inteligência, nossa capacidade intelectual. Pois,
enquanto há uma onda tempestuosa de aplausos, entrevistas, admiração girando em
torno de um comercial, ”menos Maria, que está na Europa”, assuntos
importantíssimos são esquecidos, desprezados. Isso dá-nos a entender que somos de um país de terceiro mundo, atrasado
não só economicamente, mas acima de tudo, culturalmente.E sabe quem ganha com
tudo isso? Claro, que é a elite, os poderosos, os ricos, ou seja, a alta
sociedade..
Brincadeira exposta na mídia para
o povão é bom demais. Quanto mais o povo brinca, melhor, pois vai esquecendo-se
de cobrar, de lutar em defesa dos seus direitos inalienáveis. Então, fazer o
povão brincar é estratégia lógica e pensada para amansá-lo e aliená-lo. É o
famoso “pão e circo” na crista da onda. E essa
praga ideológica ainda não morreu, continua mais viva do que nunca. E
agora tomando dimensões variadas, modernizadas, com poder estrondoso de atração
e repercussão na vida das pessoas despossuídas de senso crítico: “menos na vida
de minha filhinha, que está nos E.Unidos”.
Durante toda a semana, pude ouvir muita gente pobre,
humilde, falar assim:
-Seu padre, todos unidos para o
almoço, menos Pedro, que está na roça
-Padre, meus filhos moram comigo,
menos Chico, que está na cadeia por roubar uma galinha
-Padre, aqui está minha família,
só falta a esposa, que está no céu. Ela morreu na fila do hospital
-Meus filhos não estão aqui,
estão no corte de cana, na pior humilhação, dizia um determinado pai
-Padre, fico tão triste quando
sinto a falta de minha filha.E pergunto-lhe ,onde ela está? Ele responde: no
cemitério. Morreu porque não tinha dinheiro para fazer uma cirurgia do coração.
-Pergunto a uma mãe: todos estes
são seus filhos? Ela responde-me: sim, mas falta uma. Ela está lá na roça,
ajudando ao pai.
-Eita vida doida, seu padre, essa
nossa. Meu filho foi morar longe, muito longe. Pergunto-lhe: ele foi estudar?
Nada. Está em no Pará, trabalhando na carvoaria.
-Olha, seu padre, eu estudei a
vida toda, e até agora não arrumei um emprego. Agora, Pedro, que está na
Europa, e nada fez até agora, ficou famoso de uma hora pra outra, e já tem
emprego a sua espera, por causa de uma brincadeira criada por marketing
comercial. Já pensou um negócio desse?
-Que bonito, minha família
reunida para a oração!. Só falta Toinha, que está na França, trabalhando de
empregada doméstica.
-Nossa vida é sofrer, sofrer,
sabe o porquê? Porque todos nossos filhos estão em São Paulo,dando um duro para
viver.
-Seu padre, vamos almoçar na
minha casa, amanhã? Só eu, meu marido e um filho vão estar lá. E pergunto-lhe
onde estão os outros, e ela responde-me: um está em São Paulo, trabalhando no
pesado, outro está no Rio de Janeiro, trabalhando como gari, e o outro,na
Bahia,trabalhando no cacau.
-Padre, o que foi que essa tal
meninha fez para ganhar tanta notoriedade, fama, prestígio e muito mais? Ela
abraçou alguma causa humanitária, foi?
-Por que a mídia não valoriza as
pessoas, as instituições que abraçam tantas causas humanitárias? É por que não
dá dinheiro?
-Na minha casa, no natal, meu pai
e meus irmãos diziam: todos reunidos, menos Djalma, que está no sertão seco e
torrado.
-Olha padre,quando a gente luta
por terra,por água, casa, segurança, educação de qualidade, não há nenhuma
repercussão. Pelo o contrário, há é muita depreciação, chacota, críticas
mesquinhas.
-Tudo o que a elite faz tem
repercussão bonita, tudo o que pobre faz tem polícia no meio.
Sinceramente, nós temos tantas coisas
para nos preocupar, e perdendo tempo dando ouvindo ou levando em consideração,
brincadeiras fúteis, inúteis, sem nenhuma significância para nosso País, nosso
Estado. Essas brincadeiras, visando promoção pessoal, familiar e empresarial,
só podem ser coisas de mentes desprovidas de sensibilidade humana e cristã, no
tocante aos graves problemas sócio-econômico que ferem impiedosamente tantos
filhos de Deus, menos o filhinho do papai, que está na Itália.
Alguns questionamentos
pertinentes:
Por que não dizemos: milhares de
brasileiros estão na Europa vivendo de forma humilhante, lutando pela vida?
Por que não dizemos: milhares de
sertanejos estão no sudeste e sul do Brasil,bem distantes de suas famílias, dando um duro para sobreviver?
Essa estratégica brincadeira
capitalista que está nas redes sociais, rádios, jornais, agrada a quem? Que
benefício traz para os que estão com sede, com fome, na miséria? Ou melhor,
qual seu benefício social, econômico e cultural para um povo sedento de justiça
social?
Uma coisa é certa, fama ou
notoriedade em cima de superficialidade é igual a meteoros, passam rápidos e
não deixam rastros. Enquanto isso, Pedro, Maria, João e tantas outras
Severinas, que estão na Europa sofrida da vida, permanecem na caminhada da
existência, com suas dores e tormentos, esperando socorro, que nunca vem.
Padre Djacy Brasileiro, no alto
sertão paraibano.
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